ROBERTO DE OLIVEIRA
da Revista da Folha
Galinha, boi e porco nascem predestinados a servir à humanidade. A carne de todos eles vai à mesa. A pele de um vira casaco e sapato, os ossos, botão e gelatina. A discussão é como conseguir manejá-los de uma maneira que amenize o sofrimento. Oferecer uma morte menos dolorosa é o propósito do chamado abate humanitário, às vésperas de passar por uma revisão inédita no Brasil.
Pela primeira vez, uma parceria entre uma ONG internacional, a WSPA (sigla em inglês para Sociedade Mundial de Proteção Animal), com sede em Londres, e o Ministério da Agricultura prevê uma campanha do Programa Nacional de Abate Humanitário, que terá início em 2009.
Como diz a veterinária Charlí Ludtke, 30, da WSPA, coordenadora do programa, carne é uma responsabilidade de todos. "De quem produz, de quem abate e até de quem a consome."
Cinco profissionais, entre zootecnistas e veterinários, começam a ser treinados em outubro para percorrer 700 frigoríficos de Santa Catarina, do Paraná, do Rio Grande do Sul e de São Paulo nesta primeira etapa do projeto.
As normas do abate humanitário de suínos, aves e bovinos vão ser transmitidas por meio de DVDs, apostilas e aulas práticas e teóricas. A ação conjunta de uma ONG internacional e do governo brasileiro segue o modelo consagrado em países desenvolvidos. Na Inglaterra, por exemplo, a Universidade de Bristol age em parceria com frigoríficos britânicos, para desenvolver técnicas de abate humanitário, dando cursos e treinamentos de capacitação, inclusive no quesito transporte, o que é obrigatório em toda a União Européia. Lá, ao contrário do que ocorre no Brasil, os condutores precisam passar por um programa sobre o bem-estar animal antes de sair pelas estradas transportando carga viva.
Por aqui, a idéia é ensinar, por exemplo, a carregar animais de fazendas e granjas para os frigoríficos de modo que eles não sofram tanto durante o trajeto. O embarque e o desembarque devem ser feitos de uma forma mais tranqüila, que atenda às boas práticas de manejo.
Matadouros e abatedouros do Estado de São Paulo são obrigados, desde 1995, a utilizar métodos científicos e modernos que impeçam o abate cruel de animais. Mas nem todos seguem a lei. O índice de carne clandestina varia de 20%, nas regiões mais abastadas, a 60%, nas mais pobres do país. Nesses casos, o abate é feito ainda de forma primitiva, cruel e violenta. "O transporte é muito precário. Os animais sofrem durante o trajeto: bois são pisoteados, frangos acumulam fraturas e machucados. No abate, suínos são esfaqueados com punhaladas no coração e jogados em tanques para escaldadura, muitas vezes ainda vivos", critica Sônia Fonseca, presidente do Fórum Nacional de Proteção e Defesa Animal.
Uma das líderes do movimento para que o abate humanitário se tornasse lei em São Paulo, Sônia é categórica: "É claro que não existe forma boa de matar, mas, no momento, o abate humanitário é uma maneira de diminuir um mal que não podemos evitar".
Bem-estar X abolição
É aí que, com o perdão do trocadilho, a porca torce o rabo. Na opinião de alguns defensores dos animais, pouco importa colocar música clássica para os bois ouvirem ou colorir as granjas com tampinhas de garrafa para as galinhas "brincarem" se o destino é um só: a morte.
O abate humanitário não é visto com bons olhos por todos os ativistas. Dentro das organizações de defesa animal, existem duas correntes: a do bem-estarismo e a do abolicionismo. A primeira prega melhores condições de criação e abate, como é o caso da WSPA, parceira do governo nesse projeto. A segunda clama pelo fim da exploração animal.
Nesta última, enquadra-se a entidade do nutricionista George Guimarães, 34, presidente do Veddas (Vegetarianismo Ético, Defesa dos Direitos dos Animais e Sociedade). Para ele, qualquer ação que vise a melhorar o bem-estar animal tem interesses comerciais e perpetua a exploração, porque cria na população a falsa impressão de que eles têm uma vida digna. "Os animais não têm interesse em serem explorados. Dentro desse cenário, essa ação é contraproducente."
Nina Rosa, 64, presidente do instituto que leva seu nome, segue o mesmo raciocínio de George. Segundo ela, de humanitário, esse abate não tem nada. "Ele prejudica o trabalho de sensibilização das pessoas", acha ela. "É uma anestesia de consciência." O instituto lançou um documentário chamado "A Carne é Fraca", sobre o consumo da carne e suas conseqüências. Feito em quatro idiomas --português, francês, inglês e espanhol--, o vídeo, que está sendo distribuído para 400 organizações em todo o mundo, conta a "trajetória de um bife", desde o nascimento de bezerros e frangos até o abatedouro. Contém cenas chocantes.
A criação intensiva de animais para consumo humano, na avaliação da ativista paulistana, é a maior causa do aquecimento global. "Fazem queimadas para dar lugar ao pasto e para plantar grãos para alimentar bois -isso sem contar o assoreamento dos rios. E não podemos esquecer que a floresta amazônica está sendo devastada para virar pasto."
Como precisa de grandes pastagens, o gado normalmente é criado longe da área de consumo, o que implica emissão de carbono para o transporte da carne e, em muitos casos, desmatamento da região. Este é considerado o primeiro fator de deslocamento da fronteira agrícola, com efeitos diretos sobre a floresta amazônica.
O "grito" das entidades encontra eco em órgãos oficiais. Estudos da FAO (Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação) mostram que a criação de animais para consumo humano é realmente uma das maiores causas de problemas ambientais, incluindo aí o aquecimento global, a degradação da terra, a poluição da água e do ar e a perda da biodiversidade. Há até uma pesquisa que revela que ela seria responsável por 18% do efeito estufa, com a participação direta da produção de ração para animais, à base de grãos.
Na Europa e nos EUA, não faltam iniciativas anticarne ancoradas na problemática ambiental. O ex-beatle Paul McCartney, vegetariano veterano, lançou em junho na Inglaterra o "Meat Free Mondays" (segundas-feiras livres de carne), com a intenção de encorajar os carnívoros a consumir comida vegetariana ao menos uma vez por semana, citando o comunicado da ONU como uma boa medida para cortar a carne do cardápio.
Uma das organizações mais ativas (e polêmicas) do mundo é a norte-americana Peta (Pessoas pelo Tratamento Ético dos Animais, da sigla em inglês).
Só para ter uma idéia de uma de suas controvérsias, a entidade chegou a comparar os matadouros a campos de extermínio nazistas. Dona de uma ousada campanha a favor do vegetarianismo, a Peta decidiu, no mês passado, centrar fogo em carnívoros famosos na sua mais recente empreitada contra a morte dos animais.
Sônia, do Fórum Nacional de Proteção e Defesa Animal, rejeita essa divisão entre as ONGs. "No fundo, todos somos abolicionistas. Não tenho pretensão de impedir que as pessoas comam carne. Se isso não é possível no momento, por ora, vamos minimizar o sofrimento dos animais", defende.
O problema é que uma questão permanece aberta: o brasileiro não dispõe de ferramentas para identificar, na hora da compra, se o produto obedeceu às normas de bem-estar animal durante a criação e o abate, como é comum na Europa e em parte dos EUA.
Fonte: Folha Online
Foto: SXC.HU
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2 comentários:
Minha cunhada foi num matadouro e nunca mais conseguiu comer carne... nem gelatina ela come... ela fala que todo mundo deveria ir.. pelo menos uma vez na vida... eu ainda não tive coragem nem vergonha na cara... :(
Bjão lindeza...
mudei para o wordpress e já coloquei seu link no devivo lugar dele (:
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